31 de agosto de 2014

sobre ser maria.


pegou as duas moedas douradas que tinha no bolso e jogou em direção ao céu. de olhos fechados se concentrou tentando ouvir o tilintar suave da prata caindo no chão de asfalto cinza e quicando. era frio e os cabelos voavam com o vento gelado do inverno. a boca seca estava completamente escondida pela manta negra que lhe protegia da noite paulista. as mãos voltaram imediatamente para os bolsos e nos tornozelos duas polainas vermelhas já gastas escorregavam em direção aos pés. bêbados caminhavam pela rua com cheiro de sexta-feira. bitucas de cigarro e latinhas de cerveja no meio fio. era pequena e tinha horas de sobra de vida. tinha uma casa, em baixo do morro. perto das lojinhas cults da cidade e do lado de um clube gay. amarela e vermelha. com azulejos coloridos na cozinha. com alecrim, arruda, jasmim, peixinho, comigo ninguém pode e pimenta na sacada. os discos e a vitrola voltaram pra ela, junto com a melancolia do poeta e a criatividade que o novo traz. enfim, estava em casa. cheiro de incenso no ar, misturado com o restinho de aroma que sobrou da comida que invadiu a cozinha a algumas horas atrás. estava só consigo mesma e não queria estar em nenhum outro lugar do mundo que não ali onde estava agora. maria estava crescida e quase quase virando gente grande. já tinha forma: pernas torneadas, seios medianos e um olhar malicioso. os cabelos já crescidos podiam ser enrolados e presos no alto da cabeça, como um ninho de passarinho. tinha trabalho: dois. no primeiro cuidava de atores. e no segundo cuidava de equipes e equipamentos. gostava de cuidar e tinha medo de não poder ser mãe um dia. escovava os dentes pelo menos três vezes ao dia e relutava em passar o fio dental. comia pouco quando sozinha. tinha preguiça. bebia bastante água e suco de uva. não sabia fazer a sobrancelha. se confundia nas palavras e as vezes invertia a ordem das frases. usava açúcar no lugar do sal, e vice versa. tinha um paladar estranho. era charmosa. usava aparelho nos dentes e tinha as unhas curtinhas. há três meses havia aterrizado aqui nessa cidade grande carregando uma mala preta com uma fita rosa escrito "frágil". já foi logo avisando para terem cuidado com ela. era feita de um vidro fino e podia se quebrar a qualquer momento. dos cacos miúdos ia nascendo uma nova maria que aos poucos se recriava e crescia entre a multidão. domingo era a única noite silenciosa no bairro festeiro em que morava. e em especial nessa noite estava chovendo na cidade seca. um presente dos céus. todos agradeciam. foi um lindo banho de chuva com direito a ventos e folhas voando paulista acima... parecia que os prédios dançavam na sua volta, todos corriam apavorados e maria, carregando as plantinhas recém compradas nas mãos, caminhava serena deixando os pingos gelados acariciarem seu corpo. essa vida é bem louca mesmo. quem diria que tudo isso aconteceria? onde estava escrito? sabia que o ano seria intenso. mas nunca imaginou que fosse tão bom. maria era daquelas meninas que tinha medo de ficar sozinha mas que quando assim se encontrava achava um prazer imenso poder estar consigo mesma. era difícil acreditar que fosse tão interessante. e era. era gigante. quase explodia de tanto amor e as palavas brotavam dos dedos tão naturalmente que era quase inevitável não escrever. era só o primeiro dia dos muitos que ainda viriam pela frente. e depois que os dedos se cansassem maria se acomodaria na cama macia e deixaria o sono vir. ali onde o único ar que se podia sentir era o seu. só e muito bem acompanhada, maria sonhava e sorria.

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