12 de junho de 2013

sobre navegar na saudade.


era sábado de manhã e ela se despertou cedo e sem sono. tinha tido um sonho bom. sonhara com a menina de cabelos vermelhos e olhos azuis e brilhantes de novo. falavam sobre a vida sentadas em uma banheira num quarto de hotel. acordou sorrindo e apaixonada. o dia estava nascendo e o sol lá fora lhe convidava para um passeio. era seu último dia em paris... calçou os chinelos e saiu, descabelada. comprou um café forte e fumou o primeiro cigarro depois de dias de abstinência. caminhou pelo sena, perto da água. a cidade ainda fria aos poucos ia acordando... poucas pessoas nas ruas, silêncio... pássaros cantavam e o som do vento balançando os galhos das árvores lhe dava um prazer imenso. era como se os ponteiros do relógio dessem uma pausa e o instante congelasse na memória... era leve o amanhecer. desceu as escadas de pedra e se sentou em um banco na beira do rio, com o sol carinhoso da manhã batendo em seu rosto. do lado direito a "ponte dos amores" com milhões de cadeados de casais apaixonados. do lado esquerdo uma igreja, catedral, majestosa e gótica... atrás um muro de pedra de milhões e quilhões de anos, um mar de histórias nas suas costas. e na sua frente, estacionados no rio, barcos/casa repousavam. estava numa ilha e ali não havia mais ninguém além dela e os pássaros. de longe se ouvia a respiração forte do homem que descansava na rede dentro de um dos barcos... plantas enfeitavam a entrada (daquelas verdes e grandes que saltam do vaso e quase tocam o chão), velas apagadas em cima de uma mesa logo após a ponte bamba que ligava o barco à cidade e uma janela com a cortina entreaberta de onde ela podia ver algumas cartas de tarôt num canto, bitucas de cigarro e garrafas espalhadas... o barco balançava discretamente de um lado para o outro, num balanço tranquilo e sereno como a brisa da primavera... ele acordava pela manhã e fazia um café forte. recolhia as garrafas de vinho da noite anterior e se alongava olhando o rio. depois de três bocejos e o primeiro gole de café ascendia um cigarro. tinha a barba por fazer e os cabelos ondulados. nariz grande e olhos profundos. do tipo misterioso/artista/meiosujo que algumas de suas amigas provavelmente morreriam de amores. tinha o charme francês... e um tique nervoso no canto da boca. era chef de cozinha mas havia se demitido do emprego fazia pouco tempo e estava até pensando em mudar de carreira. dentro de um mês completaria quarenta anos e andava se questionando se a vida tinha tomado o rumo que ele queria, meio sem saber na realidade que rumo gostaria que ela tivesse tomado... nunca foi de planejar as coisas nem de buscar estabilidade em o que quer que seja... se deixava levar com a correnteza do rio, um dia após o outro... vivia como um jovem garoto e se perdia em diferentes pernas nas noites parisienses. noites vazias. era silencioso, observador. tímido, talvez. suas relações amorosas tinham sido um fracasso sempre. depois de um tempo com alguém se sentia invadido e terminava tudo. tinha medo de amar... mas agora era diferente. sentia o coração palpitando e batendo descompassado. pensava em navegar, seguir a correnteza e sair dali... queria algo novo, fresco, pessoas de verdade. queria se sentir vivo, mudar, sei lá... sentir aquele frio na barriga até os pêlos arrepiarem, sabe? queria sentir orgulho do que é, do que foi e do que será. pensou primeiro em levantar a âncora do barco e partir sem rumo, rumo ao desconhecido... mas isso seria igual ao que sempre fez... depois pensou na mãe que há tanto tempo não via. havia saído de casa há vinte anos atrás para estudar na frança e nunca mais voltou. prometeu ligar toda a semana. os dias foram passando, as semanas viraram meses, os meses viraram anos... a primavera acabou e o verão veio com tudo, se perdeu nas noites, nas festas, na bebida... arrancou o calendário da parede e jogou os relógios no rio... e quando se deu por conta os cabelos haviam crescido, o tom da voz não era mais o mesmo, as costas doíam e os olhos estavam cansados... esqueceu da mãe, assim como esqueceu da ausência do amor... esqueceu das tardes em sua casa de infância, do cheiro de feijão, do barulho da chaleira... esqueceu... assim de repente, como quem aperta o "del" e apaga todas as recordações... matou a memória na inútil tentativa de não sentir saudade. na inútil tentativa de não sentir mais nada. mas agora o nada era tudo e a saudade explodia em seu peito. saudade de ser alguém, de fazer parte de algo. de ser tratado bem, com carinho... saudade da menina de cabelos vermelhos... decidiu abandonar o barco, arrumou uma pequena mala com algumas poucas coisas e partiu de trem rumo ao brasil. pegou um navio e foi parar no rio de janeiro. de lá foi descendo o país de carona até o sul... chegou num dia frio de inverno, em uma noite estrelada de lua crescente. foi buscar a mãe, e encontrá-la foi mais fácil do que imaginava: estava sentada em frente à lareira na antiga casa, com a mesma roupa de sempre, porém mais velha, cansada. ao seu lado estava a menina de cabelos vermelhos dos seus sonhos, agora com os cabelos mais curtos mas com os olhos com a mesma intensidade azul brilhante de antes... matou a saudade. enganou os medos... e pode sorrir satisfeito por um instante. estava feliz, com o coração virado pra cima, escrito em baixo: frágil. 

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